Nesta segunda-feira, 29 de agosto, a Lei de Cotas (lei nº 12.711/2012) completa 10 anos de sua criação. De lá para cá, as salas de aulas e corredores das universidades públicas se tornaram mais diversos social e racialmente.
Com o sistema de cotas, as universidades e instituições públicas de ensino reservam 50% de suas vagas para estudantes que cursaram o Ensino Médio em escolas públicas.
São contemplados grupos específicos, como pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas. Também são atendidas pessoas de baixa renda, que recebem até 1,5 salário mínimo de renda mensal familiar, por pessoa.
Em 2016, a lei nº 13.409 determinou a inclusão de pessoas com deficiência (PcD) nas cotas de acesso ao Ensino Superior público.
O percentual para as cotas étnico-raciais e para PcD é determinado de acordo com a proporção de cada um dos grupos, em cada estado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Confira no vídeo abaixo um bate-papo sobre os 10 anos da Lei de Cotas. O convidado é o cientista político Pedro Cruz, também Secretário Adjunto de Inclusão da Universidade Federal de Goiás (UFG):
Desigualdades
Apesar da maioria da população brasileira ser composta por pessoas negras, 56,2%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as desigualdades são evidentes e percebidas em diferentes espaços e setores.
A desigualdade de renda e racial se consolida enquanto uma problemática crônica no Brasil, segundo a professora de Sociologia, da Universidade Federal do Ceará (UFC), Dra. Milena Marcintha Alves Braz.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2018 [1] apontaram que o rendimento médio real de trabalho das pessoas negras é de R$ 2082, no trabalho formal, uma diferença de 36,5%, se comparado aos brancos, com renda de R$ 3282.
Quanto às pessoas com deficiência, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 [2] mostrou que, no Brasil, existem 17,8 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. O número representa 8,4% da população.
Esse mesmo estudo apontou que 67,6% da população de PcD não tinham nenhuma instrução de ensino ou apenas tinham o Ensino Fundamental incompleto. Em comparação às pessoas com nenhum tipo de deficiência, o percentual destas é de 30,9%.
Diversidade e a Lei de Cotas
Junto a políticas afirmativas adotadas pelas universidades brasileiras desde o início dos anos 2000, a Lei de Cotas somou-se ao processo de diversificação social e racial, argumenta a professora Milena Marcintha.
Confira a mudança no perfil dos estudantes do Ensino Superior, segundo pesquisa, realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), de 2018 [3]:
Adriele do Carmo (26), de Salvador (BA), é poetisa e formada em Relações Públicas pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Foi aprovada no vestibular aos 18 anos, na modalidade de cota racial.
O desconhecimento sobre como funciona o processo seletivo para o Ensino Superior é uma realidade presente na vida de alguns estudantes. Esse é o caso da Adriele, que conta sobre a falta desse tipo de informação durante o Ensino Médio, feito em escola pública.
“A importância das cotas está na reparação histórica de pessoas que social e racialmente não possuem acesso ao espaço da universidade.” - Adriele do Carmo
A profissional em Relações Públicas enfatiza que, por meio do sistema de cotas, tem-se um processo de reparação da desigualdade no acesso à educação.
Maria Janicléia (24), natural de Cipó (BA), ingressou no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe (UFS), em Aracaju, no ano de 2019. A estudante entrou na universidade por meio da cota de pessoa com deficiência, autodeclarada parda e de baixa renda.
De acordo com a jovem, o sistema de cotas é efetivo, mas ainda insuficiente. No caso das PcD, para ela a oferta de vagas ainda é muito limitada. Quando ela entrou, era apenas uma vaga.
Na perspectiva da estudante, a oferta de poucas vagas tem mais a ver com seguir determinada legislação do que com o intuito de incluir esses corpos na universidade.
Maria Janicléia relata que, quando entrou na UFS, a quantidade de pessoas com deficiência era muito baixa, mas, após a retomada das aulas em formato remoto na pandemia, mais pessoas com diferentes tipos de deficiência se tornaram estudantes da universidade. Ainda assim, segundo ela, o número é baixo.
A universitária enfatiza a necessidade de as pessoas cotistas exigirem existência e liberdade:
“A cota nos disponibiliza estar em lugares que a sociedade nos marginaliza a não estar. Ela vem para impor o nosso lugar e mostrar para a sociedade que podemos estar onde a gente quiser: universidade, escola, eventos culturais.” - Maria Janicléia
Para a estudante de Letras - Francês, Érika Souza (20), as cotas tiveram papel essencial para sua entrada no curso da Universidade de Brasília (UnB). Cotista de baixa renda e autodeclarada negra, ela relata o esforço, no processo de estudos para o vestibular, para encontrar conteúdos gratuitos.
“O estudante de escola particular tem todo um suporte, tem tudo que já é entregue ali pra ele. Seria muito injusto competir com uma pessoa que teve muito mais tempo do que eu pra se preparar, teve mais recursos.” - Érika Souza
Érika e sua mãe, que cursa Pedagogia, são as únicas da família que estão no Ensino Superior.
Veja no vídeo abaixo o depoimento do estudante Lamin Boa Morte, do curso de Ciência e Tecnologia. O jovem ingressou, pelo sistema de cotas, na Universidade Federal da Bahia (UFBA):
De acordo com a historiadora e mestra em Antropologia Social Yordanna Lara, a Lei de Cotas produz impacto social e econômico importante no processo de luta por uma democracia real e cotidiana.
Com esse sistema, os profissionais, na opinião da pesquisadora, estão mais preparados para atuar com as diferenças, devido à própria diversidade que parte do espaço de formação.
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História da Lei de Cotas
A Índia se tornou um dos primeiros países do mundo a utilizarem ações afirmativas. A iniciativa ocorreu por meio da Constituição de 1950 e sua definição de cotas para castas e tribos específicas e pessoas com deficiência.
Em 1961, os Estados Unidos passaram a aplicar ações afirmativas no país, viabilizadas em decreto assinado pelo presidente John Fitzgerald Kennedy. Essas políticas foram impulsionadas pelos movimentos sociais engajados na luta contra a discriminação e pelo direito à diferença.
Com o objetivo de combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero, de classe, as ações afirmativas se constituem enquanto mecanismos que garantem a participação de grupos historicamente discriminados, aponta Yordanna Lara, que é mestra em Antropologia Social pela UFG.
Nesse sentido, essas pessoas passam a participar dos processos políticos, a ter acesso à educação, à saúde e ao trabalho formal, de acordo com a pesquisadora.
“As ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos e ações em benefício de populações pertencentes a grupos historicamente discriminados e vitimados pela vulnerabilização socioeconômica no presente.” - Yordanna Lara
No Brasil, com a Constituição Federal de 1988, foram intensificados movimentos de promoção de políticas afirmativas. Um desses eventos foi a Marcha Zumbi dos Palmares, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no ano de 1995, lembrou a historiadora.
As primeiras universidades públicas brasileiras a adotarem políticas de ações afirmativas como a reserva de vagas a determinados grupos foram:
- Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj);
- Universidade de Brasília (UnB);
- Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
A demora na aplicação dessas ações na educação superior ocorre devido à dificuldade do país em se desprender das amarras da escravidão, defende o cientista político Pedro Cruz.
Desafios em torno da Lei de Cotas
Uma pesquisa, realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa da UERJ [4], mostra que 26% dos estudantes negros possuem dificuldades financeiras que afetam a continuidade dos estudos.
A permanência na universidade é um desafio enfrentado pelos estudantes, segundo Adriele do Carmo. Diante das dificuldades financeiras, muitos universitários precisam trabalhar e, com isso, conciliar estudos e trabalho.
“As políticas de permanência dentro da universidade são tão importantes quanto as cotas, pois os estudantes pretos, periféricos e pobres precisam de auxílio financeiro e de cursos extras, como o de idiomas.” - Adriele do Carmo
Durante a graduação, nas atividades do curso, é necessária a leitura de artigos e livros, alguns deles em outros idiomas. Adriele reforça a importância do suporte a esses estudantes que não tiveram acesso a cursos de outras línguas, por exemplo, para que possam desenvolver seus trabalhos acadêmicos.
A estudante Hawalari Coxini, da comunidade indígena Karajá do Tocantins, afirma que as cotas foram fundamentais para poder ingressar no curso de Publicidade e Propaganda da UFG.
Além das cotas, para Hawalari, é essencial a universidade fornecer auxílios financeiros que contribuam para a manter os estudantes no curso.
O grande desafio para o processo de inclusão, segundo o cientista político Pedro Cruz, para além de abrir as portas da universidade, está na criação de estratégias de manutenção desses estudantes ao longo de sua formação. A inclusão, para ele, envolve acolhimento, permanência e sucesso.
Revisão da Lei de Cotas
O texto da Lei de Cotas prevê uma revisão da legislação até a data que completa os 10 anos. Entretanto, esse trabalho não foi feito no Congresso até então.
A revisão diz respeito a uma avaliação de como funcionou a Lei de Cotas ao longo desses anos. Com isso, os parlamentares discutirão sobre uma ampliação, redução ou quaisquer mudanças necessárias no texto.
A professora da UFC Dra. Milena Marcintha aponta que há uma diversidade de projetos de leis acerca dessa discussão. Alguns pedem a revogação da Lei de Cotas; a retirada do critério racial; já outros pedem uma revisão após 30, 40 ou mesmo 50 anos, conclui a pesquisadora.
Há mobilizações que pedem a inclusão de determinados grupos que ainda não são atendidos pela Lei de Cotas. Yordanna Lara aponta levantamentos da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), os quais evidenciam que 70% de pessoas trans e travestis não concluíram o Ensino Médio e que apenas 0,02% desse grupo está no Ensino Superior.
Pedro Cruz lembra também que a inclusão de quilombolas na Lei de Cotas é uma proposta da própria UFG. O grupo ainda não é contemplado pela legislação nacional, apenas por políticas específicas das instituições de Ensino Superior.
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Cotas na pós-graduação
Os programas de pós-graduação das universidades públicas ainda não são atendidos pela Lei de Cotas. No entanto, algumas instituições contam com reserva de vagas definida por resoluções próprias.
De Belo Horizonte, graduada em Direito, Ana Gori (40) é estudante do mestrado em Dança pela UFBA.
A mineira, a primeira de sua família a entrar na faculdade, conseguiu ingressar no mestrado pela cota racial. Ana relata que a concorrência para entrar na pós-graduação por meio das cotas é maior do que na graduação, devido à especificidade no ingresso, já que a oferta de vagas é menor.
“Não faz sentido ter programa de cotas para graduação e não ter na pós-graduação, que é onde a pesquisa realmente transborda os muros da universidade e vai para a sociedade.” - Ana Gori
Segundo Ana, se todas as pessoas que estão na universidade forem brancas e tiverem condições financeiras para pagar escolas particulares, a produção de conhecimento girará em torno dessas experiências.
“É impossível falar de experiências periféricas pretas, trans, quilombolas, indígenas, sem ter esses corpos e corpas. As pessoas falam muito por outras, mas quem têm que falar são as pessoas que vivenciam.” - Ana Gori
Comissões de heteroidentificação
O trabalho das comissões de heteroidentificação atua no combate às fraudes nas autodeclarações raciais, segundo Pedro Cruz.
A característica analisada nas bancas de verificação, no caso de autodeclarados pretos e pardos, é única e exclusivamente fenotípica. Ou seja, em que se observa os aspectos físicos dos candidatos, diz o cientista político.
No caso da UFG, os membros da banca levam em consideração, pelo menos, duas características que reforçam a autodeclaração racial para a habilitação do candidato à matrícula.
Para os candidatos indígenas, a análise é feita apenas partir do documento apresentado de pertencimento étnico que deve ser emitido pelo grupo indígena e assinado por lideranças locais.
Notas
|1| Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) — 2018. Disponível aqui.
|2| Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) — 2019. Disponível aqui.
|3| Pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) em 2018. Disponível aqui.
|4| Pesquisa do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa da UERJ. Disponível aqui.