COMENTÁRIO
O tema da prova de Redação do ENEM 2016 foi intolerância religiosa, um assunto, como sempre se vê nessa avaliação do INEP, de natureza ética, de relevância coletiva, com particularidades nacionais. A frase temática a partir da qual o candidato deveria ter pensado o seu texto foi: “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”. Assim, o recorte direcionava, necessariamente, para a elaboração da proposta de intervenção social: quais os caminhos para se combater a intolerância religiosa nacional? Como se combater a intolerância religiosa no Brasil? Quais ideias poderiam ser colocadas em prática para se eliminar a intolerância de religião no contexto nacional? Só que, antes de elaborar a solução, geralmente ao final do texto, o estudante teria que ter percebido que a introdução, assim como toda a argumentação de sua dissertação, deveriam responder ao seguinte questionamento (desdobrado, a seguir, de forma pleonástica): por que há intolerância religiosa no Brasil?
Por que motivos o brasileiro está sendo intolerante ultimamente? Quais as razões para que o desrespeito religioso, infelizmente, esteja se fazendo presente em um país como o nosso? Porque, claro, se a avaliação redacional estava “pedindo” por “caminhos para combater a intolerância religiosa”, é porque a premissa de discussão gira em torno da existência do embate religioso intolerante e, em um texto que visa à problematização – como é o dissertativoargumentativo – os motivos que levam ao problema seriam um bom “percurso” para um eficiente tratamento do tema.
Nessa trajetória argumentativa, o aluno poderia ter utilizado da coletânea as muitas ideias (que poderiam virar excelentes argumentos) presentes no trecho I: a obrigatoriedade do Estado, por ser laico, de assegurar o respeito a todas as religiões e de não permitir interferência de correntes religiosas em matérias sociais, políticas ou culturais; a garantia, assegurada pela Constituição, de liberdade de crença religiosa às pessoas. No segundo trecho, o título reproduzido (“Intolerância religiosa é crime de ódio e fere a dignidade”) já seria um excelente ensejo para mais desenvolvimento argumentativo: “atitudes agressivas, ofensas e tratamento diferenciado a alguém em função de crença ou de não ter religião são crimes inafiançáveis e imprescritíveis” é uma passagem desse segundo excerto que também poderia ter rendido ao candidato muitas possibilidades argumentativas. Do terceiro excerto da coletânea, poderia ter saído um argumento de considerável autoridade: está descrito, detalhadamente, na lei brasileira, que intolerância religiosa é crime. Do quarto e último trecho da coletânea, o estudante poderia ter extraído números “ilustrativos” da situação de intolerância religiosa no país: as religiões que mais sofrem com desrespeito, a quantidade de denúncias, algumas percentagens de episódios de intolerância em 2013 e 2014 em território brasileiro.
Além das informações oferecidas pelos textos-bases, o candidato também poderia ter usufruído de argumentos como o do quanto a intolerância religiosa desrespeita a dignidade humana; do quanto desrespeita, inclusive, a liberdade de expressão. Havia ainda a opção argumentativa de explicar que quem é intolerante tolhe o direito do outro e é incoerente: aquele que é desrespeitoso com a crença de outrem é desrespeitoso com a sua própria religião, uma vez que, na base de todas as crenças religiosas, está o amor ao próximo, amor que passa, necessariamente, pelo respeito ao outro. Portanto, ser intolerante por motivos religiosos é, por princípio, uma contradição.
As opções de proposta de intervenção social dependem do percurso argumentativo escolhido pelo candidato, mas poderiam ter sido sugeridas ações como campanhas de tolerância religiosa utilizando todas as plataformas midiáticas, principalmente as redes sociais, que teriam como objetivo conscientizar e mobilizar a sociedade brasileira a respeito da importância do tema; a realização de eventos ecumênicos, incentivados e patrocinados pela esfera pública, que disseminassem a relevância do respeito mútuo entre as religiões e que repudiassem, veementemente, atos intolerantes e violentos contra quaisquer manifestações religiosas; a introdução do tema (respeito às variadas crenças religiosas) nos currículos escolares, com abordagem estritamente sociológica e cultural, para a conscientização efetiva e qualitativa de que todas as religiões fazem parte da história brasileira, fazem parte do povo brasileiro portanto, e devem, claro, ser valorizadas como elementos de identidade brasileira: variada, multifacetada.
Um tema bem interessante que, da mesma forma que o assunto da prova de Redação de 2015 (“A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”), trouxe à tona um problema que precisa ser discutido, um entrave que precisa ser solucionado. O Brasil se mostrar intolerante à religião é uma negação múltipla; uma negação, inclusive, da sua própria história. Precisamos pensar sobre isso. Que bom que milhares de estudantes brasileiros tiveram que escrever sobre isso!